Agradecimento
Este Blogue “O Baú dos Massa” dá origem a que esta família possa narrar um pouco da sua história. Cenas há que merecem ser recordadas por aqueles que as passaram e por estes deixadas àqueles que não as viveram e que possam assim saber um pouco dos anuais da nossa família.
Aos que criaram este blogue faço votos de muito agradecimento.
Luís Massa
Lembranças das Origens
Meu Pai, para além de ser um dos projeccionistas de filmes do teatro, era também o Mestre de Palco.




Gostava da arte do espectáculo. Vivia para ela. Para ele, meu Pai, aquele Teatro Circo, e em particular o Palco, não tinham segredos. Os grandes artistas da Revista e do Cinema Português, e como estes os mestres que os acompanhavam para preparação de todo o espectáculo, o respeitavam e o admiravam quer pela arte quer pelo empenho que sempre dedicava e desenvolvia para a grandiosidade dos espectáculos.
Não havia recanto do teatro que ele não conhecesse. Muitas vezes era sua companhia e, por causa disso, também fiquei a conhecer muito bem o Teatro por dentro. Lembro-me bem de o acompanhar ao exterior da grandiosa cúpula
(foto) - clarabóia por cima da Plateia - do Teatro. Desse local tinha-se uma vista esplêndida sobre a cidade. Para chegar ao exterior dessa clarabóia (telhado e cúpula) subiam-se umas escadas estreitas, em madeira, para o urdimento (armações em madeira que cobriam toda a área do palco), que ficaria a uns bons 25 metros de altura, e de onde pendiam varas compridas fixas por cordas que passavam por roldanas.
Era maravilhoso acompanhar todo o espectáculo nesta área, responsável pela grande “magia” do palco. As diversas mudas dos cenários, das bambolinas, das pernas, e de outros equipamentos eram um autêntico bailado. Eram harmoniosas aquelas manobras e os movimentos de içar e arriar os cenários e outros equipamentos. Era mágico.
Outros cenários (retábulos fixos em altas armações de madeira) eram movimentados á força de pulso e a jeito, por dois homens, um de cada lado, e depois presas por cordas, em cruzeta, e escoras. Estes altos painéis teriam uns bons oito ou nove metros de alto por três de largura.
Meu Pai fazia de contra-regra, que é arte de produzir efeitos sonoros como trovões, relâmpagos, passos, etc., realizados através de objectos muitas vezes improvisados. Sabia de Carpintaria, de Electricista, enfim, tudo o que no palco era preciso fazer.
E também não esqueço: Antes de abrir aquele magnífico pano (tela) de boca de cena do palco
(foto), meu Pai anunciava o início da Revista com sonoras batidas no soalho do palco, terminadas com três pancadas intervaladas, som obtido através de uma “tranca” de madeira ou, até, com um martelo.
Aquando das peças de teatro, a Ciclorama - tela branca - onde se projectava os filmes, fixada numa estrutura em alumínio (ou tubagem de ferro?) - era retirada da boca de cena para o fundo do palco, bem como os altifalantes (som surround) que se situavam por detrás da tela branca.
O alçapão e o local do ponto tinham passagem através do fosso do palco (local que ouvi dizer ter sido um cemitério, talvez de um convento muito antigo). No fosso do palco, e ainda mais abaixo (outra cova com uns bons 6 metros) se situava uma grande caldeira para aquecimento do ambiente do Teatro Circo.
E os Camarins? Coisa linda… Aqui vi muitos e muitos artistas a se prepararem para o espectáculo. No hall dos camarins havia um belo piano, que muitas vezes vi ser tocado e afinado por um Técnico da “Casa dos Pianos” da Rua de S. Marcos.
Existiam duas cabines no Palco: Uma destinada aos Bombeiros Municipais outra, denominada cabine eléctrica, onde estava um grande quadro eléctrico, cheio de fios e grandes fusíveis e cobres à vista, carregados de grande voltagem. Este seria dos locais onde estive e onde não se admitiam nenhumas distracções.
E relativamente ao cinema: Era bem pequeno, fora da idade para tal, assisti a muitos filmes. Vi o filme da “Múmia”, o “Tarzan” interpretado ainda por Johnny Weissmuller, os “Capas Negras” com Amália Rodrigues, O Príncipe Negro, e muitos, muitos filmes. Uns vistos bem escondidinho (não tinha idade suficiente) por detrás do ecrã, outros na frisa e outros na própria cabine de onde se projectavam os filmes. Por vezes gostava de ver os filmes na galeria, mais conhecido pelo “galinheiro”. Para crianças, lembro-me dos seguintes filmes: “Marcelino, Pão e Vinho”, “Joselito”, “Bucha e Estica”, “a Branca da Neve” e outros.
A preparação das fitas dos filmes era outra arte que o meu Pai detinha. Quantas bobines contendo filmes eu “acarretei" da entrada (junto á bilheteira) para a cabine de projecção! As fitas eram rodadas nas máquinas de projecção só depois de serem vistoriadas e rebobinadas.
Quantas e quantas horas meu Pai descansou no belo sofá (foto)
exposto em frente à cabine, no hall a que chamam Salão Nobre, onde tinha (e tem) uma varanda virada à Avenida da Liberdade. Aqui, na varanda, estava um mastro onde se hasteava uma bandeira branca com duas letras estampadas no meio: T C.
No final das sessões, quase sempre depois da meia-noite, e de regresso a casa, muito gostava que o meu Pai me levasse a comer um prego e um caldo verde. Sempre que ao cinema eu fosse tinha no final esta satisfação
Meu Pai nunca esquecia, porque sou testemunho disso: No final das sessões da noite, e antes de regressar a casa para pernoitar, meu Pai passava sempre pela capelinha de São Bentinho (Capelinha por detrás do Hospital S. Marcos), onde estava bons minutos a rezar.
Falando em São Bentinho do Hospital, recordo-me também de, com os meus 9, 10 anos, acompanhar “Romeirinhos”, vindos às 5ªs feiras do Bairro da Misericórdia, que entoavam bonitos cânticos, cuja letra abaixo deixo:
Oh meu São Bentinho
De trás do Hospital (bis)
Tu deste a saúde
A quem estava mal (bis)
A quem estava mal
E aos outros também
Oh meu São Bentinho
Para sempre ámen
Oh meu São Bentinho
Do lado de lá da ponte
Onde puseste o pé
Nasceu uma fonte
Oh meu São Bentinho
Velinhas a arder
Se as velas se apagarem
Voltai-as a acender

Muitos contentamentos meu Pai me deu.
Das “façanhas” realizadas pelo meu Pai, lembro-me também que em dia de finados, 1 de Novembro, nunca deixava de visitar as campas dos seus familiares falecidos. Nem o portão fechado do cemitério o impedia. Algumas vezes a matiné, sessão da tarde, acabava quase noite, já com o Cemitério encerrado. Este facto não era impedimento: Saltava o muro e ia visitar as campas dos falecidos parentes.
Não esqueço nunca o carinho e o mimo que minha Mãe me deu. Mãe que muitas vezes também a acompanhei, uma das quais me recordo e aqui deixo registado. Reporta-se com o General Humberto Delgado o “General sem Medo”, o homem que desafiou Salazar ao proferir uma frase que ficou para sempre gravada na memória dos portugueses, “Obviamente demito-o!”, no decorrer de uma conferência de imprensa que marcou o início da sua campanha eleitoral (ano de 1958). Humberto Delgado galvanizou multidões do Norte a Sul do país, tendo sido vítima de uma das maiores fraudes eleitorais da História, acabando por pagar com a vida, barbaramente assassinado às mãos da PIDE, em 1965.
A campanha culminou com a proibição de H. Delgado se deslocar a Braga, o que não impediu uma forte carga policial sobre a multidão (escreveu-se serem mais de 40.000) que aqui o aguardava em 1 de Junho daquele ano (1958). Recordo-me desta cena, tinha eu 10 anos. Minha Mãe e eu regressávamos no eléctrico do Bom Jesus para Braga (tinha-mos ido à Senhora do Sameiro, não me recordo se nesse dia houve peregrinação?) e fomos forçados a sair no Largo da Senhora-a-Branca porque o mesmo estava impossibilitado de circular. A multidão e a confusão na Avenida Central eram muita e tivemos de nos refugiar num hall de uma habitação (junto à farmácia Silva). Daí vi, à minha frente, um polícia com uma espingarda nas mãos, com capacete arredondado de cor cinzenta, como era também a cor da farda que vestia, com arreios no corpo e botas pretas até aos joelhos. Apontava a arma á multidão sem hesitar. Era um pandemónio. Lembro-me que algum tempo depois nos apareceu um homem, bem vestido, que se dispôs a levar-nos pela Avenida Central, passando pelo Banco de Portugal, e nos deixar no final da Rua dos Capelistas, já bem perto da nossa casa do Bairro. Nesse percurso deu para me aperceber que a polícia, muitos a cavalo, carregava sem hesitação sobre a multidão que fugia de um lado para o outro. A Avenida Central e a Avenida Marechal Gomes da Costa (actual Avenida Liberdade) estavam em polvorosa. Ninguém escapava, fosse homem, mulher, novos ou velhos. Ainda hoje estou por saber como aquele Senhor nos conseguiu passar, no meio daquele turbilhão, sem sermos beliscados!
Esta é uma parte pequena de coisas que me lembra deixar.
Luís Massa
MAIO2009